Por isso essa voz tamanha

Rafael Salles
4 min readNov 17, 2022

Sabe uma faca me rasgando?

Recuso, de todas as formas, referir a Gal no passado. Há dias jogo por “Gal Costa” no Google e nenhuma das pesquisas é o que quero ler. Por que todas as matérias cismam em estampar a mesma palavra no começo, ao lado do nome dela? É ilógico, é maldoso. Não há mais o flood de fotos que ela postava cotidianamente no Instagram. Na bio das redes sociais estampa a hashtag #GalPraTodaVida e não mais “Perfil atualizado por Gal e sua equipe”. Está deserto tudo em volta.

Nada estava preparando ninguém para esse evento, ninguém estava ciente. Como que é acordar, ter o dia interrompido por uma informação tão cruel quanto essa?

Gal, por que você se foi?

Gal, como a gente vive sem você?

A mãe de todas as vozes se cala, e em volta tudo está deserto, no mais fúnebre dos silêncios, certo como dois e dois são cinco. Não se explica o inexplicável, não se retoma à normalidade tão fácil, não se aceita. Não se aceita, nem um pouco.

Não é concebível imaginar uma existência sem Gal.

Sabe o mundo se acabando?

Volta. Vem viver outra vez ao nosso lado.

É dilacerante essa realidade. Esse rombo cultural e humano que é deixado neste país, que acreditamos que renasceria das cinzas novamente. E você esteve aqui para ver, esteve, como sempre, do lado certo da história, esteve conosco. Mas queria ter você para seguirmos; andando com fé, com esperança, sem medo. De que reconstruiríamos o país das cinzas. Mas percebi que talvez nunca seríamos um.

Senti um desamparo ímpar de sair pela rua àquela quarta-feira. O mundo estava seguindo no “normal”, era só o dia que marcava o meio da semana. No domingo, Milton Nascimento despediu-se dos palcos. Em ambos os dias, os comércios não fecharam, as pessoas não choravam pelas avenidas, não se ouviam as músicas tocando em rádios, celulares. O mundo não havia parado para sentir aquela dor dilacerante – e se parou, soube disfarçar muito bem. Que bobagem esconder, quero que chore. Pode chorar. Em 1980 Elis Regina, emocionada, ao falar sobre o assassinato de John Lennon justifica as lágrimas dizendo “Você se abala quando as coisas desagradáveis acontecem as pessoas que você ama… não se permite o ser humano o direito de uma lágrima?”. Permiti então. Um choro de dias, que estampou a semana e ainda segue, as vezes tímido arranhando a garganta.

Talvez viver com este luto já seja uma realidade. Quero, como Bethânia, que a saudade fique. Ele estará aqui todas as vezes em que pensar nas felicidades e tristezas, nas esperanças e melancolias que foram embalados pelas vozes de Gal; a suavidade jovem, o grave maduro, os gritos estourados, os agudos, a serena paixão em cantar sorrindo e transparecer a felicidade no gogó.

Decerto devo ter subestimado a grandeza de Gal. Estive, sempre, ciente da mansidão que em mim sempre habitou, mas jamais cogitei que conseguiria crescer cada vez mais. Nas revisitas incessantes, nas criações das trilhas, na psicodelia sessentista, nos sonhos dos ao vivos, ao sentar olhando o mar ouvindo Folhetim… a cada dia, mais que a saudade, Gal tem crescido. Sozinha, ela sempre foi imensa.

Diversas mulheres cabiam em Gal; o Brasil – ou Brasis, plural como tal – coube todo nela. De Tieta, Gabriela, Tigresa, Lily Braun a Maria da Graça, Gaúcha, Gracinha… fa-tal, [vaca] profana, legal, índia, baby, tropicalista, estratosférica, dona de divinas tetas, hippie, doce e bárbara, gata, joão-gilbertiana, roqueira, psicodélica e até um pouco hermética. Melhor: esotérica.

Todos não eram iguais a você, Gal, e graças por não serem. Este mundo não tem cacife para ter, nem de brincadeira, uma segunda Gal Costa. Secretamente, desejo jamais que tenha.

Não adianta nem abandonar, ela é eterna. Ela vive, viverá, sempre. Tamanha voz jamais se cala.

Mesmo ainda que paire este desamparo melancólico em pensar na ausência e na interrupção abrupta de tantos desejos pro futuro, o amargor de ficarem as canções e ela partir, quero prevalecer o carnaval fora de época, o carisma em sempre cantar sorrindo, o tailleur cintilante ou a mesma blusa preta e branca, o balancê embarcado no bloco do prazer. Com o som de guitarras elétricas perdendo para as cordas vocais divinas-maravilhosas, espero a felicidade de tê-la girando na vitrola eternamente. Preciso respeitar minhas lágrimas, mas muito mais minha risada, que neste tempo tem sido tão escassa.

Como iniciado, não direi nada no pretérito, e por isso não finalizo dizendo-lhe “foi” um prazer; é. É, e sempre será, um prazer, Gracinha.

--

--