Saudade, palavra brasileira

Rafael Salles
6 min readMay 29, 2023

“Vou fechar o cinema com a chave de lágrimas”

Um amigo esses dias disse-me que o Recife haveria de voltar a ser uma cidade cinéfila. Tenho me pego pensando em constância sobre o acesso aos cinemas da cidade. O São Luiz, mártir maior do centro desta cidade com cheiro de maré, fruta e mijo, atualmente encontra-se fechado; num remate repentino, às vésperas de sessões ao final de semana, uma delas de Le diable probablement de Robert Bresson em 35mm. Sem mais notícias, apenas que estaria sendo fechado para uma reforma de seis meses. Há mais, não obteve-se demais notícias. Nenhum letreiro para notificar que, em breve, encontraremo-nos; nenhum “Cuidem-se” de capacete para aliviar a queda livre da saudade sobre nossas cabeças.

A palavra-chave que sustenta esse texto é “saudade”.

Retratos Fantasmas, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, cuja estreia deu-se no Festival de Cannes, tem como ponto de partida a introspecção. Mendonça segue em autorreferência majestosamente, debutando o filme-recado a partir de sua própria filmografia e então seguindo pela história dos cinemas de rua da cidade. Uma obra com cheiro, gosto, som de afeto, carinho, cuidado, preservação. Lembrar da história e repassar é preservá-la, manter acesa a chama da lembrança para que nunca se apague. Após longo período em que o comum era que o passado e a cultura estiveram ceifados, onde se assistiu a Cinemateca pegar fogo, por exemplo, é um respiro aliviado que um trabalho como este esteja para estrear ao grande público em breve.

Peço licença agora para, também, usar da autorreferência enquanto sigo com as palavras.

Estar dentro de uma sala de cinema é despir-se da realidade e abandonar o mundo lá fora enquanto a escuridão lhe deglute e lhe deixa refém do que está sendo mostrado naquela grande tela, tendo no feixe de luz a única iluminação do ambiente. Estar dentro de uma sala de cinema é, sempre, como um ritual. Um transe. Estar dentro de uma sala de cinema é estar em um local sagrado, o santo altar da cinefilia. Estou ciente que, dentro daquele local, estou fora do mundo, mesmo vendo um documentário. Este, mesmo que fiquem resquícios amargos da realidade infeliz que é ter o São Luiz de portas fechadas, traz acima de tudo todas as boas sensações que apenas o cinema – e a cinefilia – poderiam trazer: o saudosismo de uma época nunca vivida, as histórias e estórias uma época nunca vivida, as histórias e estórias contadas ao decorrer de sua duração, anedotas e crônicas, imagens e vídeos recortadas num fino pastiche que costuram em linha de ouro todas as ideias e ideações a serem mostradas. A autorreferência usada por Kleber, aqui, é simples. Um cineasta com bagagem e trabalhos invejáveis consegue contornar toda possível abjeção que uma grandeza egotista traria diante tamanha inteligência; jamais: ciente do ouro que possui, o diretor faz exatamente o contrário e molda seu filme com a simplicidade e cautela de um oleiro transformando do barro em uma escultura. É perceptível, em toda sua duração, de toda arduidade utilizada das pesquisas até a montagem final e da grandeza do carinho em contar essa história.

Dentro da sala, tenho a certeza do transe que abarca a mim e demais presentes, isto se confirma no final, com elogios rasgados e experiências compartilhadas. Cinema é a maior diversão, disso não há dúvidas.

Finda o filme. Créditos, aplausos, antes de seguir para a tietagem com o realizador ao final, saco o celular para notificar os envoltos da experiência. Notificações do WhatsApp, tal como ocorreu num exato dia há seis meses; dois amigos e dessa vez minha tia, todos me avisam: faleceu Rita Lee. Tive flashbacks imediatos do fatídico dia da partida de Gal Costa, cuja capa do disco Índia estampa a blusa que visto. Em meio ao turbilhão de emoções que conduz o trem que me atropela, o público íntimo segue para fora da sala. Ainda tento assimilar os ocorridos, com a certeza única que escreveria. Um texto que, inicialmente, falaria sobre o fechamento do São Luiz, e após uma oportunidade de prestígio faria o paralelo com o longa de Mendonça, agora – talvez – teria um novo objetivo. Em todos, contudo, a saudade era o ponto de partida.

E segue sendo, talvez, o foco principal.

Então analiso tudo. Troco ligeiras palavras com Kleber antes de sua saída, apresentando-me e parabenizo pelo belo filme e dizendo sobre esse texto que segue sendo escrito. Sento no exterior e escuto; percebo o som ao redor. Chilrear de pássaros, poucas rodas na estrada e nenhuma voz. O contraste do azul celeste e o verde das árvores, a arquitetura dos ambientes e o nada. Tomo anotações mentais da estrutura do texto e volto a anotar nas notas do celular o que mais soa interessante. Em casa, volto ao luto por uma parcela de instantes.

Pensando na saudade, recupero a lembrança de pontos-chaves: devoção, cautela, base. Cinefilia e bairrismo andam de mãos dadas [pela ponte da Aurora] no trabalho de Kleber; apenas um devoto, ao seu trabalho e à sua cidade, conseguiria desenrolar o projeto desta forma tão bem. Fico feliz em lembrar que fui balançado no mesmo berço que tantos mestres que tão bem conseguem capturar a essência do Recife, e me lembro de um estimado professor de História do Brasil do Ensino Médio que nos disse que Pernambuco possuia os melhores cineastas do Brasil. É quase óbvio, um cinema em sua pluraridade, das memórias de Simião Martiniano a Katia Mesel, com atividades de Marcelo Gomes e Hilton Lacerda a todo vapor, não se esperaria menos que a perfeição.

Como Bethânia sobre Gal, percebo então que nunca imaginei falar da dor de perder Rita Lee. Não havia doença, diagnóstico, nenhum aviso prévio que preparasse para o choque do luto. Ele, sorrateiro, se esquiva pelas beiradas e preenche com toda sua escuridão. O transe do luto é um transe cruel, onde tudo ao redor exala melancolia e te prende pelas pernas.

Estar refém do luto, acima de tudo, é limitante. Está tudo certo, de ponta-cabeça, onde dois e dois são cinco. A ausência física de Rita Lee, onde tudo passa a ser memória, é estranha. A presença faz falta.

Em meio a tantas faltas, há também a revolta pairando entre a tristeza. Há quase um ano, não se tem resposta sobre a reabertura da grande sala da Rua da Aurora, uma das duas reminiscências da grande safra dos cinemas de rua da Grande Recife – em meio a muito suor, lágrimas e ansiedades, reabriu-se o Teatro do Parque após uma reforma de mais de uma década – nem das justificativas para a demissão em massa de sua equipe. O que se pode esperar, dizer, projetar para o futuro da cinefilia pernambucana, que tanto tem a contar histórias nesta sala majestosa? Onde tantas gerações passaram e outras irão passar, do novo que tanto anseia para vir?

Todo saudosismo, afeto e dedicação são trazidos belamente em Retratos Fantasmas. É difícil escapar do atropelamento de trem sentimental que o documentário traz. Suas sacadas, seus truques de cena e de roteiro são plenos. Igualmente, sua carta aberta à governadora Raquel Lyra funciona como díptico à obra. O atravessamento da arte, sobretudo da cinefilia – que honra, é claro, o cinema com o título de ser a sétima – é, felizmente, universal. Diferentemente da palavra saudade, que só existe no português e todas as traduções são apenas sinônimos ou chutes na trave. O sentimento, para nossa sorte, atravessa igualmente. Quiçá Cannes entenda a tradução da palavra ao assistir o filme.

Talvez este seja um texto vago, ou apenas um compilado de divagações sem ter para onde ir, apenas ciente de que se está caminhando. Em tudo que olho, ao redor e para trás, vejo saudosismo. Sem rota, sigo seguindo, com o ensinamento dos velhos mestres que teimam em ser mais presentes do que nunca. Sentir saudades é sinal de que se está vivo. And I’m alive and vivo muito vivo vivo.

Pela memória de Seu Alexandre, Geraldo Pinho e Rita Lee.

--

--